“Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”.
Inicio o meu “Catálogo das Naus” de 2018 com a célebre afirmação de Guimarães Rosa em seu conto O Espelho, pois embora eu já tenha empreendido uma longa viagem e conhecido mares e cidades, há muita invisibilidade em minha história. Não estive tão presente nas redes, não anunciei meus atos, não participei de prêmios e concursos literários (como em anos anteriores), não publiquei uma linha sequer. Não dei aulas, não fui a lançamentos de livros, nem confraternizei em rodas de cerveja literárias. Tampouco tenho um catálogo de mais de 100 livros lidos para indicar. Nesse aspecto, uma professora querida disse uma vez: mais vale ler 7 vezes o mesmo livro do que ler 7 livros. Assino embaixo. A leitura se faz aos poucos, lenta e profundamente.
Não posso indicar uma centena de livros porque, além de não acreditar na possibilidade de “ler bem” tantos livros assim, vivo um processo criativo que me chama ao aprofundamento no invisível, a uma escuta atenta de mim mesma. Uma mulher grávida dificilmente quer embalar outro filho que não o seu.
Mas, afinal, o que está acontecendo quando nada parece acontecer? Que invisibilidade é essa?
Esse é o estigma dos anônimos que tecem a história. Não são os grandes nomes que fazem nascer nações, culturas, ideias, construções, nem fazem avançar as sociedades. São as mãos anônimas que atuam fortemente na construção de tudo que conhecemos. Foi neste rio que mergulhei em 2018 (e talvez já esteja nele desde 2013, quando me recolhi na toca para criar um projeto literário verdadeiro, que não fosse só uma resposta aos tempos atuais, e para gestar um filho).
O ano começou com o espírito da ação (uma escolha que me propus intuitivamente). Seria o ano da retomada da escrita, de seguir os passos de Rudolf Steiner e de me preparar para rever os amados amigos do Chile no congresso de estudos gregos em outubro (enfim, Kazantzákis!). Mas o rio flui... Flui e se transforma. Fui levada pela correnteza a atuar a partir do coração.
Em minha invisibilidade, foram mais de 300 almoços (ou jantas) cozinhados para a família, muitas idas ao supermercado, inúmeros dias deitada na cama com cólica ou dores de cabeça, desentendimentos familiares, idas e vindas diárias à escola do filho, centenas de mensagens trocadas no whatsapp, indecisões, cansaço, desânimo, perda da rota, encontro da rota, conversas com o além, leituras de tarô, quilos de roupa lavada e passada, tempo desmanchado na ampulheta diária, e o filho, minha casa do sol de todos os momentos.
De temperamento melancólico, mas sempre otimista, no encalço do super-homem nietzschiano (mais além, sempre além, mais além de mim mesma e no centro de mim), sou uma ariana com Marte em câncer e Vênus em peixes. Minha luta é o amor. Minha luta é delicada. E embora o mundo seja agressivo e violento, posso esmorecer sem me entregar.
Logo em março, o vento soprou pela voz de um amigo e segui a sorte, dei início ao processo de reforma de minha casa para nela materializar um projeto de 2012: a Casa Ogham. Ação intuitiva, coração exposto, vida potente de amor. Em paralelo, segui com cursos terapêuticos e espirituais, como o Reiki, que abriu todos os portais de entendimento. Casa pronta, delicada, amorosa, pulsante de significação, manancial etérico, não tive coragem de inaugurar.
Mas eu estava ali, balançando na ventania sem me quebrar. Veio Héstia, a deusa-fogo, me revelando que estivera sempre comigo, desde meus 21 anos, quando decidi ser mãe. Vieram também descompassos, desacertos, incompatibilidades. Mas tantas mulheres a me ensinarem sobre o feminino e a tornarem meu coração ainda mais caloroso.
A casa inaugurou em 17 de agosto, dia de nascimento da monja Hildegarda von Bingen (abadessa, escritora, compositora, visionária, feminista, doutora, profetiza), a quem admiro e honro. O círculo formado recebeu o nome de Líris, em homenagem a Hermes (em sua face feminina Íris) e à lira (instrumento por ele criado). Foi o dia de minha iniciação e agradeço imensamente a todas que lá estiveram, com olhos e ouvidos corajosos.
Curiosamente, aqui o rio mais uma vez se agitou e me levou ao propósito de janeiro. Retomei os estudos de Kazantzakis para compor uma banca de doutorado. Profundamente mergulhei nessas águas, ao mesmo tempo em que ouvi o chamado do #elenão. Foi no furor do grito entalado (na garganta? No útero?) que segui para São Paulo e participei da banca em 17 de setembro, data da morte de Hildegarda.
Já estávamos todos pendurados no abismo, sem compreender, desolados, mas ainda acreditando que era possível vencer a onda fascista. Muitos de nós não tiveram forças para trabalhar; outros, mais corajosos, seguiram para as ruas, no ímpeto de esclarecer quem nada estava entendendo do período crítico. O movimento despertou o amor um tanto latente ou voltado ao círculo restrito de nossos afetos. Despertou a coragem e o grito represado por eras de patriarcado. Era preciso proteger, cuidar, preservar, impedir que as minorias não perdessem os poucos direitos adquiridos com dor e sangue. Era preciso defender o humanismo e resistir a todo golpe contra a humanidade.
Mas o golpe veio em forma de eleição democrática, em um cenário de vertigem geral. Estávamos todos à beira do abismo, cambaleando, até mesmo quem acreditou que o fascismo era a solução. Foram semanas de desorientação. Que caminho seguir? Quais armas poderíamos manejar para continuar defendendo o humanismo e, ao mesmo tempo, cuidar uns dos outros?
Não tive forças para permanecer atuando. Tranquei as portas da Casa Ogham, dias depois de ter plantado inúmeros vasos em sua entrada, inclusive o Lírio esperançoso. Voltei-me pra mim, para o centro de meu mundo invisível, e retomei o autocuidado. Desse retiro, renasceu a escrita, vem se formando uma cidade, e o projeto de 2012 – escrever um épico na contemporaneidade – agora se faz presente (se as oscilações da água permitirem, virá a público neste novo ano).
Entretanto, houve mais: se as portas da Casa Ogham foram temporariamente encostadas, lancei-me a um último grito – escrever em poucos dias um TCC sobre a importância da casa na formação humana, desde o nascimento até a sua entrada no mundo social (“A casa como útero etérico na formação da criança”), como parte do curso de pedagogia Waldorf para o primeiro setênio. O resultado deste trabalho foi apresentado em 17 de novembro.
Mas o rio me surpreendeu novamente. A vontade de responder as questões do momento sócio-político e de permanecer na luta reuniu mulheres delicadas, que resistem bravamente bordando, tecendo, costurando e escrevendo para si e para o resgate de outras mulheres. Em 17 de dezembro, nosso site foi criado, e inaugurado no dia seguinte. Ativismo delicado é como defino hoje a minha luta.
Chegando ao ponto do encerramento, sentada ao pé da lareira de Héstia, compreendo que as águas jamais nos afastam do propósito, mas fazem fluir a corrente que jorra do coração. De 2019 não espero nada, nem de mim, nem das pessoas (já que seremos governados pelo signo da imprevisibilidade e do horror), que o coração permaneça apenas pulsando para compor laços, pois este é o milagre do humanismo.
Carolina Bernardes é doutora em Letras (Teoria da Literatura) e mestre em Estudos Literários, ambos pela UNESP. Como escritora, publicou Retalhos e Epopeias (Patuá, 2012), Flauis (Instituto do Livro, 2010) e a tese de doutorado A Odisseia de Nikos Kazantzakis: epopeia moderna do heroísmo trágico (Cassará, 2012). Atua em casa e na Casa Ogham, espaço de confluência do mundo caseiro com a escrita de si, as árvores, as artes manuais, o sagrado feminino e a antroposofia.