Texto de Nina Veiga*
Morei muitos anos no Sul de Minas, cidade de Três Pontas. Terra de Milton Nascimento e Padre Victor. Foi lá que conheci o catolicismo.
No dia 23 de setembro, é feriado por lá. Dia de Padre Victor, padroeiro da cidade e chamado de "Anjo Tutelar". Foi alçado à categoria de beato, coisa importante para a tradição católica e caminho para a sua promoção como santo.
Romeiros de todas as partes do país chegam na cidade a pé, de ônibus de excursão ou de carro.
Há anos, desde que as atividades religiosas foram abduzidas por um extremismo antivida, não pensava no velho padre.
Resolvi gravar um texto que escrevi em sua homenagem.
Vivia num lugar muito distante, região de panos raros. Cada pedaço de tecido, tivesse sido ele trazido no lombo das mulas dos caixeiros viajantes ou batido fio a fio nos teares dos quintais, era um bem precioso a ser preservado.
Ficou pensando nisso enquanto, um pouco mal-humorado, avaliava a extensão do rombo. Logo acima da barra, o rasgo irregular narrava o encontro com um prego. Acarinhou o pano ao redor do estrago, como a pedir-lhe desculpas. Os dedos tatearam o passado e o transportaram há meio século, ao tempo em que, ainda noviço, aprendera a fazer remendos.
Balançou um pouco a cabeça, como a espantar as lembranças e caminhou até o armário em busca da antiga caixa de costura. Abriu a tampa e encontrou velhos amigos. Quantos anos, quanto uso, quantos remendos. Uma vida a remendar panos e almas, pensou, ainda a devanear um pouco, mas já com o humor refeito. A perspectiva da costura o animara.
Esforçou-se na tentativa de passar a linha pelo buraco da agulha. Os óculos já não o ajudavam tanto. Teve um assombro ao perceber quão fino estava o tecido, parecia sua própria pele que ia se tornando cada vez mais e mais fina, na medida em que envelhecia.
Finalmente velho, como ele, o tecido de lã começara a aproximar-se da textura da casimira, tão sonhada, mas que nunca pudera comprar. Não pode deixar de sorrir ao comparar sua pele com a pele da batina, as duas estavam mais finas com o tempo. Estamos gastos, minha velha.
Ficou a unir as bordas esfiapadas do rasgo com pontos miúdos. A vista cansada e a mão um pouco trêmula não afastaram o prazer que sentia na costura. Cada ponto aproximava mais a mão do pensamento e o pensamento das lembranças. Um portal, concluiu, a costura era um portal para a memória.
A memória levou-o até o tempo em que sua maior ambição, entrar no seminário, parecia-lhe distante e, à noite, antes de dormir, ajoelhado no tijolo, pedia ao céu: uma batina de casimira e um roquete de linho com renda larga. Eis que a persistência e o tempo fizeram da grosseira lã a casimira querida.
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*Nina Veiga é artemanualista, ativista delicada, doutora em educação, escritora e conferencista. Sua pesquisa habita o território da casa, suas artes e terapêuticas, na perspectiva da antroposofia da imanência, junto ao cuidado de si e do outro.
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